Jorge Folena, cientista político.
Segundo a narrativa de Domingos Sarmiento (em Facundo: civilização ou barbárie), a vasta extensão territorial que constituiu o latifúndio, somada ao analfabetismo, constituíram as bases para a implantação, por toda a América Latina, de um sistema político fundado no caudilhismo patrimonialista, cujos efeitos se percebem até hoje, por meio de governos presidencialistas que se apresentam sempre com a marca personalíssima do mandatário.
Até a chegada da Família Real portuguesa em 1808, o domínio da política no Brasil era dos caudilhos ou caciques. A distância da Corte portuguesa para a colônia permitia que os senhores mais fortes se tornassem os donos da política e da vida das pessoas que estavam no Brasil, exercendo um domínio pessoal e arbitrário; nesse contexto, a política é exercida com forte viés personalista e de mandonismo.
Tanto no período em que a sede da metrópole foi transferida para o Brasil quanto no decorrer do império, a Família Real portuguesa e seus descendentes combateram essa construção, debelando todas as reações caudilhas e centralizando o poder e a unidade nacional a partir da capital, no Rio de Janeiro.
A grande vitória do caudilhismo no Brasil deu-se a partir da implantação da República, com a derrocada dos militares monarquistas que pretendiam transferir a estrutura de poder unitário do império para a República recém implantada, em bases presidencialistas.
Mesmo distante da realidade política do Brasil, constituído como país unitário, os governadores (antigos presidentes de províncias no Império) conseguiram impor uma federação que lhes permitiu, assim, deter o poder de polícia e a atribuição das demarcações locais de terras.
A partir da primeira República conseguiram impor um presidencialismo marcado pela mística cultural personalista, em que traços do passado imperial foram resgatados.
Temos até hoje uma federação de papel, com estados e municípios falidos, pois muitos entes federativos não têm como se manter, por si, e ficam na total dependência de repasses da União. Neste sentido, a dura crítica formulada por Alberto Torres ao grande Ruy Barbosa, por copiar um modelo de federação desenvolvido pelos americanos, para uma situação circunstancial e pragmática das treze colônias, que nada tinha a ver com a realidade política de um Brasil de formação unitária política e administrativa, como ocorreu na colônia e no império.
Porém, o entendimento que prevaleceu durante o processo de consolidação da república, influenciado por juristas como Ruy Barbosa, foi para a constituição de uma federação, o que beneficiou politicamente o coronelismo, representado pelos governadores.
Todas as vezes, na história do país, em que se tentou, de alguma forma, romper com o coronelismo e promover alguma inclusão social e a defesa do patrimônio nacional, não logramos sucesso. O resultado foi o suicídio de um presidente (1954) e a deposição de outro, em pleno exercício constitucional de seu mandato (1964).
No último caso, o país foi lançado em vinte anos de escuridão, com a cassação de mandatos parlamentares, deposição de juízes da Suprema Corte, a realização de inúmeras prisões ilegais, torturas e assassinatos, como apurou a Comissão Nacional da Verdade, no relatório entregue em dezembro de 2014. Ao final, foram atingidos até mesmo os que inicialmente defendiam a deposição do governo.
E hoje não parece ser muito diferente, pois as forças obscuras do passado ainda se fazem presentes contra os avanços sociais e a extensão de alguma forma de cidadania a milhões de brasileiros. Isto porque agentes políticos civis que atuaram no antigo regime (1964-1985) permaneceram tranquilamente em suas posições, sem que tenha ocorrido purgação ou ruptura oficial com o passado ditatorial e ainda hoje dificultam, em grande medida, as proposições de um país mais inclusivo socialmente.
Sendo assim, é possível estabelecer a hipótese de que os reacionários do passado possam estar atuando no presente, diretamente ou por intermédio de seus descendentes (herdeiros e legatários), alimentando a pregação moralista que tomou conta do Brasil nos últimos anos, como ressaltamos no nosso livro “O Poder Judiciário e as ditaduras brasileiras”.
Desta forma, é de estranhar que os herdeiros dos caudilhos ou dos coronéis (que sempre defenderam o sistema de governo presidencialista e personalista, como se consagrou na cultura política do país durante mais de um século) hoje venham defender o “semipresidencialismo” ou parlamentarismo, que enfraquece o poder do mandonismo, mas que poderá livrá-los de ir para a cadeia, mantendo seu foro privilegiado.
Diante do possível oportunismo, as perguntas que não querem calar: a proposta de semipresidencialismo ou parlamentarismo, debatida na Câmara dos Deputados na “reforma política” em curso, valerá para todos os estados e municípios brasileiros aonde ainda prevalecem, na política, as forças do mandonismo e do coronelismo? Prefeitos e governadores irão entregar seu poder às Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, instituições que detêm o poder de governo no parlamentarismo?
São questões que merecem uma reflexão mais aprofundada, pois a proposta de parlamentarismo debatida na Câmara dos Deputados se revela contrária ao modelo político historicamente adotado no país, que tem suas marcas no mandonismo e no personalismo.
Por fim, alertamos que um regime parlamentar pressupõe a existência de partidos políticos com uma estrutura orgânica consolidada, o que não existe na política brasileira, marcada por legendas de aluguel e agrupamentos políticos de caráter oportunista e para fins eleitorais, sem respeitar programas políticos e sem qualquer conteúdo ideológico.