CARATINGA- De um lado, muitas pessoas à espera de um transplante. Do outro, poucas pessoas dispostas a doarem seus órgãos ou de seus entes queridos. Trata-se de um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão (coração, fígado, pâncreas, pulmão, rim) ou tecido (medula óssea, ossos, córneas) de uma pessoa doente (receptor) por outro órgão ou tecido normal de um doador, seja ele, vivo ou morto.
Para o Ministério da Saúde, um grande desafio do Sistema Nacional de Transplante é o de diagnóstico e certificação em tempo hábil da morte encefálica, quando o coração continua batendo, mas o cérebro deixa de funcionar. Atualmente, 30% das pessoas com mortes encefálicas acabam tendo seus órgãos doados. Boa parte dos casos em que não há doação deve-se à recusa familiar.
De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, num comparativo dos números de doação de órgãos e transplantes, dos anos 2015 e 2016, o Brasil obteve aumento de 3,5%, atingindo 14,6 doadores por milhão de população (pmp). Houve leve redução na recusa familiar no país, porém o índice ainda é alto. Hoje, 43% das famílias brasileiras entrevistadas não autorizam a doação dos órgãos (índice em 2015: 44%).
Na contramão dessa estatística, algumas pessoas desejam ter solidariedade ao próximo. O DIÁRIO traz uma reportagem especial sobre esse assunto.
ENTENDA
Tire suas dúvidas por meio deste questionário do Ministério da Saúde:
O que é morte encefálica?
Morte encefálica é a parada definitiva e irreversível do encéfalo, provocando em poucos minutos a falência de todo o organismo. O encéfalo inclui o cérebro e o tronco cerebral. É responsável pelas funções essenciais do organismo como o controle da pressão, da temperatura e da respiração, entre outras. Após algumas agressões neurológicas, as células do cérebro podem morrer e deixar de cumprir essas funções, apresentando um quadro que é irreversível. O coração continua batendo sozinho por causa do seu marca-passo interno (que é temporário). Aparelhos e remédios podem manter a respiração e a pressão, mas por um espaço curto de tempo.
Quando é constatada a morte encefálica, significa que a pessoa está morta e que, nesta situação, os órgãos podem ser doados para transplante, se a família consentir. Se não houver o consentimento os aparelhos serão desligados, já que o indivíduo está clínica e legalmente morto.
Posso ter certeza do diagnóstico de morte encefálica?
Sim. O diagnóstico é realizado por meio de exames específicos e pela avaliação de dois médicos diferentes, com intervalo mínimo de 6 horas entre as duas avaliações. Além disso, é obrigatória a confirmação do diagnóstico por, pelo menos, um dos seguintes exames: angiografia cerebral, cintilografia cerebral, ultrassom com dopplertranscraniano ou eletroencefalograma.
O diagnóstico de morte encefálica é regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, conforme definido pela Lei nº 9434 de 1997.
É possível o diagnóstico de morte encefálica apenas com um exame clínico?
Sim. O diagnóstico é clínico, mas, pela legislação brasileira, ele deve ser confirmado com outro método de análise: eletroencefalograma, angiografia cerebral, entre outros. Em alguns países essa exigência não existe.
A morte encefálica pode ser diagnosticada em qualquer hospital?
Em princípio sim, porque o diagnóstico básico é clínico e deve ser feito por um neurologista. Contudo, alguns hospitais não têm condições de complementar o diagnóstico com exames específicos, como a lei exige. Entretanto, desde que haja necessidade, uma equipe médica e equipamentos podem ser deslocados de um hospital para outro.
Como o corpo é mantido após a morte encefálica?
Para a manutenção hemodinâmica do corpo após a morte encefálica, o coração é induzido a funcionar à custa de medicamentos, o pulmão funciona com a ajuda de aparelhos e o corpo continua sendo alimentado por via endovenosa.
Morte encefálica é o mesmo de coma?
Não. A morte do encéfalo não é a mesma coisa que o coma. No coma, o paciente está desacordado e vivo, tendo o comando das funções básicas de manutenção da vida, podendo ser reversível. A morte encefálica é quando o cérebro para de funcionar, isto é, o sangue deixa de circular não levando mais oxigênio para às suas células – e a perda irreversível das funções cerebrais. Neste momento, o óbito é caracterizado. Existem exames neurológicos que facilmente diferenciam o coma do estado de morte encefálica.
Uma pessoa em coma também pode ser doadora?
Não. Coma é um estado que pode ser reversível; morte encefálica, como o próprio nome sugere, não. Uma pessoa somente se torna um potencial doador após o correto diagnóstico de morte encefálica e a autorização dos familiares.
ESTATÍSTICAS DO TRANSPLANTE EM MINAS GERAIS
Família pretende doar órgãos de jovem, após constatação de morte cerebral
Uma jovem bonita e de apenas 19 anos. Apaixonada por eventos religiosos, como o Dia Nacional da Juventude (DNJ). Repleta de amigos e carinhosamente chamada de ‘Carol’. Nesta semana uma família de São Domingos das Dores recebeu uma triste notícia que mudaria os rumos desta trajetória. Um acidente ocorrido na noite de domingo (2), no km 21 da LMG 823, em São Sebastião do Anta, deixou duas pessoas feridas, sendo uma em estado grave.
Uma das vítimas era Carolina da Silva Barbosa. Ela foi socorrida com traumatismo craniano gravíssimo e as circunstâncias do acidente ainda estão em apuração.
Na última quarta-feira (5) foi constatada a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro da jovem. Mas, em meio a tanta dor, a família decidiu dar início aos procedimentos para verificar se a garota estava apta a ser doadora e autorizar a captação de órgãos.
O DIÁRIO DE CARATINGA esteve na residência de Vanderli Barbosa de Castro e Luciana Maria da Silva Castro, pais de Carolina. Ainda abalados, eles conversaram com a Reportagem, falaram sobre a decisão e as lembranças da garota que teve a vida interrompida ainda tão jovem.
Vanderli relembra que logo após o acidente, a primeira providência foi socorrer Carolina para o Hospital São Sebastião, em Inhapim, onde ela foi encaminhada para o Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, em Caratinga. “No Hospital de Caratinga eles não quiseram atender, entrei um pouco em desespero no momento e pedi para ir para a Casa de Saúde. Paguei tudo e fui muito bem atendido, foram feitos os procedimentos, com clínico geral e neurologista acompanhando. Quando o médico fez as tomografias e me chamou, já deu um quadro gravíssimo mesmo. Nesse momento pensei logo na Suély (administradora do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora), liguei para ela, que nos deu todo apoio necessário para levar para a UTI, só que não tinha disponível. Chamei a UTI móvel, sedaram ela para transportar ela para lá. A Suély já comunicou para chamar o doutor Miguel, que é neurologista e ele chegou por volta de 4h e me falou que o quadro era muito crítico. Depois fez os exames de reflexo, que acompanhei. Nesse momento acho que passei mal, lembro que a enfermeira me pegou pelo braço, me pediu para ficar mais longe um pouquinho. Já não estava querendo ver mais, mas acompanhei tudo”.
Segundo Vanderli, infelizmente, aquele era o anúncio de que não havia mais nada a ser feito. Apesar da esperança que ainda insistia em prevalecer na mente da família, era a hora de tomar uma importante decisão. “Quando conversou comigo (o médico), me deu aquele conforto de que não tinha outra circunstância. Pedi pra colocar na UTI móvel, correr para um lugar que tivesse mais recursos, porque de imediato é o que a gente quer. A gente não quer nunca perder uma filha de 19 anos. Jamais, de idade nenhuma. A gente imagina que o filho tem que enterrar o pai, não o pai enterrar o filho. Teria que ser essa lógica. O doutor Miguel falou comigo que queria só confortar os familiares que o quadro dela não tinha como fazer nada. Não adiantava transferir porque o tratamento que ela iria receber seria o mesmo daqui”.
Foi constatada a morte cerebral. Logo que a família recebeu a notícia, decidiu se reunir e optou por um gesto nobre: a doação de órgãos. “A gente tem uma membrana entre o crânio, tudo foi, sangue. Tem muitas fraturas no crânio. Não fraturou pescoço, mas tem múltiplas fraturas. Quarta-feira (5) a nossa prima, que é técnica em enfermagem pediu pra fazer uma visita. Foi ela e meu irmão, que está acompanhando o caso desde o primeiro dia. O médico conversou com ela e falou que infelizmente o quadro era irreversível. Ela não respondia a nenhum estímulo. Só estava respirando por conta dos aparelhos. A gente logo decidiu por doar os órgãos porque era uma menina bonita, saudável e jovem. A vinda dela aqui teve um propósito, se der tudo certo e conseguirmos fazer a doação, às vezes vai amenizar um pouco o nosso sofrimento. Ela se foi, mas vai ter alguém vivo devido a esse gesto. Muitas pessoas estão precisando”.
Para que isso aconteça, o pai de Carolina está cuidando de todas as providências necessárias para a captação dos órgãos. “Agora tem todos os trâmites a serem feitos, tem que estar em perfeitas condições para acontecer isso e a gente sair desse pesadelo”.
Além de Carol, Vanderli e Luciana têm uma filha de 12 anos, que era muito ligada à irmã. Agora, eles seguem em busca de confortá-la. “A gente tem conversado muito com ela. Tivemos uma palavra com o bispo em Caratinga, a gente está tendo o apoio da Irmã Juliana, que é minha prima primeira. Excelente pessoa e é secretária do bispo, pediu uma palavra espiritual para a gente tomar uma decisão, uma coisa mais sensata. Ele conversou muito com a gente, em como devemos cuidar da nossa filha, para não deixa-la só. Foi muito construtiva a conversa que tivemos com ele para tocarmos a vida”.
Para os pais da jovem, sobram adjetivos para descrevê-la. A emoção é inevitável. Luciana relembrou como a filha era dedicada e comprometida. “Ela praticamente criou a irmã dela, porque nós saímos para trabalhar. Ela que ficava aqui, fazia almoço, arrumava a casa, porque ainda não estava trabalhando e nem estudando. Estava tirando carteira para ajudar o pai dela (lágrimas). Ajudava as avós, uma acompanhava nos médicos, a outra limpava a casa para ela. Fazia tudo pra irmã, arrumava ela pra ir pra escola”.
Vanderli afirma que a filha era “aquela menina espontânea”, mas ao mesmo tempo doce. “Tenho uma avó de 90 anos, minha mãe e a mãe da Luciana. Ela considerava que tinha três avós. Era aquela menina que deixa de ir para uma festa ou qualquer coisa para ir dormir com a bisavó. Minha mãe mudou há pouco tempo para a rua, devido a problemas de saúde; todos exames e consultas, ela era acompanhante. Portanto, minha mãe fez um documento como a Carol era acompanhante dela exclusiva para esses fins. Cuidava da casa aqui, ia para casa da avó materna. Linda, sorridente, o tempo todo rindo”.
Carolina tinha o sonho de cursar Medicina Veterinária e se preparava para ingressar em uma faculdade. “Por fim, ela tinha falado que a bolsa que ela ganhasse, ia fazer qualquer curso, porque queria estudar, não queria ficar parada. Mas, ela ainda não tinha definido qual ela ia fazer”, finaliza Luciana.
VIDA DEPOIS DO TRANSPLANTE
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil tem o maior sistema público de transplantes do mundo em números absolutos, sendo o transplante de rim o mais comum, representando 91% dos transplantes feitos no país. A taxa de doadores no país é de aproximadamente 14 por milhão de habitantes, maior que em países como a China e o Japão, mas está aquém da média considerada ideal de 15 doadores por milhão de habitantes, como ocorre em nações como Canadá e na Austrália.
No transplante renal, o rim saudável de uma pessoa viva ou falecida é doado a um paciente que é portador de insuficiência renal crônica avançada. Por meio de cirurgia, esse rim é implantado no paciente que necessita, passando a exercer as funções de filtração e eliminaçãode líquidos e toxinas.
O DIÁRIO DE CARATINGA conversou com três pacientes da Clirenal, que tiveram suas vidas transformadas após receberem a doação de rins. Dois deles receberam o gesto de seus irmãos. Já a paciente recebeu o órgão de um desconhecido. Confira os depoimentos:
“Fiquei na fila só 11 meses. Rapidinho transplantei. Tenho bastante irmãos, sabia que qualquer um deles iria doar para mim. Inicialmente, meu irmão que ia doar, mas não deu para fazer com ele. Fiz com a minha irmã, deu certo, fiquei aguardando só fazer os exames. Após o transplante deu certinho, sete dias estava em casa, tudo tranquilo.
O problema foi uma bactéria que está no meu organismo, que parou o rim natural e parou o rim transplantado também. Voltei para hemodiálise, mas estou bem, graças a Deus. Posso tentar outro transplante, o médico falou. Só que por enquanto, não estou querendo tentar, estou com medo. Foi um choque perder meu rim natural, ter que voltar para a hemodiálise. Meu medo é transplantar e essa bactéria no meu organismo parar o outro rim, aí complica, você fica debilitado. Ficando fraco e tomando um monte de imunossupressores; piora a coisa”.
“Fiz transplante há mais de 15 anos. Na época, fiz hemodiálise por um ano e seis meses, a minha irmã doou para mim. Quando fiquei sabendo que teria que fazer o transplante fiquei aborrecido demais, morava na roça, pai de sete filhos, todos pequenos.
Eu morava em terra dos outros. Meu patrão que me ajudou demais da conta. Eu tinha uma moto nova para começar a trabalhar lá, para tomar conta de criação e terreno. Devolvi a moto para ele, que na época tinha comprado por R$ 2.700, me pagou o dinheiro e me deu mais mil, outro fazendeiro me deu mais R$ 500, inteirei o resto e comprei uma casa. Assim me acalmei um pouquinho, pois estava passando muito aperto, no aluguel.
Quando fiquei internado, senti demais e o medo de não achar um doador. Emagreci, pesei 65 quilos, deu medo demais. Depois fui fazendo os exames e assim que comecei a hemodiálise, minha irmã ofereceu para doar. O gesto dela foi muito bom. Ela ficou muito alegre na época, doida para ir atrás de mim nos exames.
Voltei para o corpo normal e aí já fui para mais de 90 quilos. Depois que acordei da cirurgia minha vida foi outra, a menina falou: ‘Olha aqui seu Antônio, o tanto que o senhor está urinando’. Eu fiquei feliz demais. A recuperação foi rápida, fiquei lá 11 dias. E vida normal. Depois de passado um tempo o meu rim direito deu problema, teve que tirar ele; o da minha irmã está aqui, só que está parado. Sigo com o tratamento aqui na hemodiálise, mas tranquilo, como se tivesse os dois rins. Passou aquela fase do começo, que era ruim demais. Como bem, tomo remédio direitinho.
Incentivo muito as pessoas, digo que não precisa ter medo, o primeiro é Deus. Depois que se faz um transplante, a vida da pessoa é outra”.
“Foi Deus que enviou mesmo. Fiz transplante há nove meses. Fiquei um ano e oito meses fazendo a hemodiálise. Meu irmão foi fazer os exames e não deu certo. Eu não podia receber o rim dele. Passou um tempo, acabei de fazer os exames, saí de Ipatinga e transferi para Belo Horizonte. Acabei de fazer os exames, Deus abençoou que o médico doutor Gustavo me ajudou muito e deu certo.
Em momento nenhum tive medo. Primeiramente na vida da gente é Deus e é a esperança de que tudo ia dar certo. Ele que guiou tudo e agradeço muito à equipe do doutor Gustavo lá em Belo Horizonte. Me deram a maior força. Fiquei muito feliz quando recebi a ligação, a
maior coisa que aconteceu na minha vida, porque ter duas crianças pequenas e pensar: ‘Nossa, será que vou acabar morrendo e deixando meus dois filhos para trás, nas mãos dos outros?’. Mas, graças a Deus, estou de pé.
É uma pessoa que a gente nem conhece. Deu tudo certo, estou em recuperação ainda porque deu um problema dos anticorpos. Na minha vida mudou tudo, eu vivia mais na clínica. Ia para hemodiálise segunda, quarta e sexta. Agora tenho mais tempo para ficar com meus filhos. Foi só benção”.