CARATINGA – Nas últimas décadas, termos como ‘urbanismo’, ‘mobilidade urbana’ ou ‘crescimento urbano’ vêm ocupando as pautas dos gestores públicos. A questão é delicada e falta a maioria da população conhecimento sobre o tema. Para falar desse assunto, o DIÁRIO entrevistou o arquiteto e urbanista Leonardo de Souza Caetano.
De forma didática, Leonardo de Souza Caetano explica a origem do urbanismo e também discorre sobre a situação de Caratinga.
O senhor sente que o interesse das pessoas pelo urbanismo aumentou?
Usualmente, quando se refere ao termo “Urbanismo”, a população em geral tende a correlacioná-lo a questões atinentes a conformação do arruamento na cidade, praças, placas de sinalização, vagas para automóveis, faixas para pedestres, conformação geográfica e os edifícios simbólicos de determinada Zona Urbana.
É possível que, devido às demandas ambientais atuais, geradas a partir de recentes mudanças climáticas e suas consequências como, aumento da temperatura, falta d’água, grande volume de chuvas acumuladas em pequenos períodos, enchentes periódicas, o interesse das pessoas pelo urbanismo tenha aumentado.
Contudo o termo Urbanismo abrange conceitos mais complexos daqueles apresentados no pensamento comum coletivo, sendo assim uma ciência humana, de caráter multidisciplinar, inserida no contexto de uma sociedade em processo de constante crescimento demográfico, respondendo a uma forte pressão da urbanidade como um todo, enfrentando suas demandas e problemas. Portanto, apesar da matéria prima do urbanismo ser a arquitetura, ou a soma e distribuição dos diversos exemplares arquitetônicos, o estudo do urbanismo dialoga com outras disciplinas tais como a antropologia, ecologia, geologia, geografia, história, sociologia urbana dentre outras ciências.
Quais os benefícios do urbanismo e quais as cidades brasileiras têm utilizado mais esses benefícios?
O urbanismo é uma temática que lida com políticas públicas relacionadas à qualidade de vida dos habitantes, principalmente de áreas urbanas, mas também em zonas rurais. Neste sentido lida simultaneamente, com o desenvolvimento socioeconômico e cultural, a mobilidade urbana, a infraestrutura de transporte e de saneamento básico, a política habitacional, a qualidade e o acesso aos espaços públicos, a proteção e conservação do meio-ambiente natural e de áreas públicas verdes em meio urbano, a resolução de conflitos comunitários, a gerência e criação dos equipamentos urbanos, o desenvolvimento e implantação de serviços públicos e o controle do uso do solo, entre outras questões.
No Brasil, o urbanismo só começou a ser efetivamente considerado como prática por volta da década de 1870 quando, ao lado da introdução dos temas da abolição e da República, se desenham na capital do então Império Brasileiro desejos modernizadores mais concretos, na linha das reformas urbanas europeias que tiveram como modelo as intervenções na capital francesa idealizada pelo Barão Haussmann e o urbanismo desenvolvido por Ildefonso Cerdá, na Espanha. Nesta década se constituem as comissões de melhoramentos com o propósito de se reformar o porto do Rio de Janeiro, como modo de intensificar a economia e os negócios com os mercados internacionais.
De lá para cá o Brasil desenvolveu relativa tradição em Planejamento Urbano, através da construção de cidades planejadas. No fim do século XIX, tem-se a fundação da capital mineira, Belo Horizonte, cujo plano começou a ser elaborado em 1894, pelo engenheiro Aarão Reis. Goiânia, construída para substituir a antiga capital do Estado de Goiás, foi fundada em 1933, obedecendo a plano do arquiteto Attilio Corrêa Lima, primeiro urbanista formado do Brasil. Brasília é outro grande exemplo de cidade brasileira projetada. O projeto da atual capital brasileira, escolhido por concurso nacional, é de autoria do arquiteto Lúcio Costa, cuja obra urbanística foi profundamente influenciada pelas ideias de Le Corbusier. Mais recentemente têm-se a construção de Palmas, tida como a última capital projetada do século XX, no Estado de Tocantins, concebida por Luiz Fernando Teixeira Cruvinel, em 1989. Próximo a Caratinga podemos citar o traçado urbano de Governador Valadares, de (suposta) autoria de Serra Lima e Ipatinga idealizada em 1958 pelo arquiteto mineiro Raphael Hardy Filho, selecionado para elaborar o plano urbanístico da então cidade operária da Usiminas.
Mais recentemente surge como grande referencial, Curitiba, capital do Estado do Paraná que ganhou a mídia nas últimas décadas como “cidade de primeiro mundo”, “capital ecológica”, “metrópole de qualidade de vida privilegiada”, dentre outras alcunhas. Curitiba conseguiu destaque mundial pela divulgação e promoção de soluções urbanas exemplares e criativas, levando seu planejador, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, a ser convidado como consultor das Nações Unidas para assuntos de urbanismo.
Quais ferramentas podem ser usadas para ajudar no crescimento das cidades?
Atualmente no Brasil, tem-se como principal instrumento de desenvolvimento urbano o Estatuto das Cidades, Lei que criou uma série de instrumentos para que as cidades possam buscar seu desenvolvimento urbano, sendo o principal o Plano Diretor Municipal, que deve articular a implementação de planos diretores participativos, definindo uma série de instrumentos urbanísticos que têm no combate à especulação imobiliária e na regularização fundiária dos imóveis urbanos, seus principais objetivos.
Esta Lei, aprovada em 2001, estimula as prefeituras a adotar a sustentabilidade ambiental como diretriz para o planejamento urbano e, ainda, prevê normas como a obrigatoriedade de estudos de impacto urbanístico para grandes obras, como a construção de shopping centers. Também lista, entre os instrumentos do planejamento municipal, a gestão orçamentária participativa.
Existem programas, como o ‘Cidades Sustentáveis’, que trabalham essas questões. Qual sua avaliação dessas iniciativas?
O Programa Cidades Sustentáveis é um instrumento criado por entidades do Terceiro Setor (ONG’s) que visa oferecer aos gestores públicos ferramentas que promovam a sustentabilidade urbana de maneira a sensibilizar e mobilizar as cidades brasileiras para que se desenvolvam de forma econômica, social e ambientalmente sustentável.
Nas últimas décadas no Brasil, assim como em outros países, vem ocorrendo o crescimento do Terceiro Setor que, por sua vez, coexiste com dois outros setores: Primeiro Setor, representado pelo governo, cumprindo este uma função administrativa dos bens e serviços públicos, correspondendo, assim, às ações do Estado, nos âmbitos distrital, municipal, estadual e federal; e o Segundo Setor, representado pelo mercado, ocupado pelas empresas privadas com fins lucrativos. Atualmente a definição conceitual do termo Terceiro Setor é difundida de maneira geral, como sendo um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos, em prol do atendimento dos direitos básicos da cidadania. Aqui cabe fazer uso das palavras do filósofo gaúcho Denis Rosenfield, que assim preconiza: “Considero bastante importante as atividades do Terceiro Setor, sobretudo porque elas permitem hoje redesenhar as esferas de atuação do Estado, que se mostrou historicamente ineficaz no país. ”
A maior parte das ONGs que hoje atuam no Brasil surgiram após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a organização e a participação social como direitos e valores a serem garantidos e fomentados. A relação de parceria das Organizações da Sociedade Civil (OSC’s) com o Estado permite qualificar as políticas públicas, aproximando-as das pessoas, das realidades locais e possibilitando o atendimento de demandas específicas de forma criativa e inovadora. A partir de vinte e três de janeiro de 2016, nas esferas dos estados e união, e um de janeiro de 2017, nas esferas municipais, passou a vigorar a Lei Federal nº 13.019, de 31 de julho de 2014, denominada Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que define novas regras para a celebração de parcerias, nas quais o Poder Público e as OSC’s cooperam para alcançar um interesse comum de finalidade pública.
As iniciativas do Terceiro Setor têm ocupado e desempenhado um papel importante na dinâmica da sociedade, uma vez que os cidadãos estão mais conscientes de seus direitos e, sobretudo, da importância de participar do processo de transformação de sua realidade e/ou do ambiente que o cerca.
Cidades iguais Caratinga, onde não houve planejamento e o centro aglomera praticamente tudo, ainda é possível reverter esse quadro?
Esta questão vem acompanhada de um diagnóstico: o de que o centro urbano de Caratinga “aglomera praticamente tudo”, provavelmente pela falta de planejamento urbano. O trabalho de se planejar políticas de interesse coletivo parte exatamente do “diagnóstico social”, uma ferramenta usada para compreender uma realidade social, classificando as necessidades e os principais problemas de uma sociedade.
Em medicina o diagnóstico deve ter em conta não apenas os sintomas, mas também o histórico médico do doente. Quando a doença é identificada em seu início, quando surgiram poucos ou nenhuns sintomas, está-se perante um diagnóstico precoce. Através do diagnóstico é possível fazer o prognóstico, que consiste na previsão de como a doença vai se manifestar no futuro. Além disso, um diagnóstico correto feito antecipadamente pode diminuir as sequelas causadas pela doença, facilitar o tratamento e aumentar a probabilidade de sobrevivência.
No caso de uma cidade, ao se levantar o diagnóstico das qualidades e patologias urbanas existentes, os múltiplos técnicos e teóricos envolvidos, como antropólogos, sociólogos, historiadores, economistas, geógrafos, geólogos, biólogos, engenheiros de diferentes especialidades, arquitetos e urbanistas, dentre outros, apresentarão um conjunto de informações que apontarão as distintas causas promotoras daquela realidade hora existente. A promoção das qualidades e o tratamento das patologias apontadas, levarão em conta instrumentos técnicos que serão apresentados à sociedade envolvida, através de audiências públicas, para que assim sejam adequados ao aos anseios desta coletividade. Similarmente à medicina, quanto antes se fizer o diagnóstico, melhor e menos dispendioso será o tratamento, como também será apontado o prognóstico do que ocorrerá caso as ações sejam colocadas em prática, ou não. Obviamente que, se o diagnóstico ou o tratamento acontece de forma tardia, algumas sequelas certamente serão inevitáveis.
Individualmente, a espécie humana tem uma expectativa de vida que alcança, quando muito, um século de existência, tronando-se um difícil exercício, na prática cotidiana, planejar algo que transcenda este espectro biológico, já no caso de uma Cidade, há de se planejar para os próximos séculos, pois sua existência é indefinida. É justamente aqui que se confronta a realidade individual com o termo sustentabilidade, que é um termo usado para definir ações e atividades humanas que visam suprir as necessidades atuais dos seres humanos, sem comprometer o futuro das próximas gerações.
Citou-se anteriormente municípios muito próximos à Caratinga que, desde sua implantação possuem no Planejamento Urbano um dos pilares de seu desenvolvimento econômico, social e cultural, certamente tal prática governamental, aliada às demais políticas desenvolvidas no âmbito municipal, moldaram e continuarão a moldar um perfil coletivo para sua população. Nesta linha, o fato do município de Caratinga não possuir um departamento de Planejamento Urbano há 169 anos e, “tudo estar aglomerado no centro” demonstra tão somente a forma como os diversos interesses econômicos, ideológicos e sociais vieram se embatendo no decorrer de sua história.
Certamente que existem diversas soluções para reverter o quadro Urbanístico hora existente nesta cidade, mas isto depende menos de propositivas técnicas do que das forças setoriais econômico-sociais que hoje conformam a comunidade caratinguense.
Em sua avaliação, quais os principais problemas ligados ao tema ‘Urbanismo’ que Caratinga enfrenta?
Esta é uma questão abrangente que pode ser respondida por diversas linhas.
Do ponto de vista estrutural é possível que o principal problema observado seja a falta de um Zoneamento Urbano, que é um instrumento utilizado nos Planos Diretores, através do qual a cidade é dividida em áreas sobre as quais incidem diretrizes diferenciadas para o uso e a ocupação do solo. Assim uma zona designada como residencial terá por objetivo a construção de edifícios que sejam residências unifamiliares ou residências multifamiliares. Uma zona comercial é um local onde é possível encontrar lojas e serviços e uma zona industrial é caracterizada por possuir instalações que funcionam como fábricas, armazéns, galpões, etc. Uma zona classificada como mista é aquela que pode ser usada para mais de um fim.
Dentre os principais objetivos do zoneamento urbano pode-se destacar o controle do crescimento urbano, a proteção de áreas inadequadas à ocupação urbana como as margens de rios, áreas íngremes e topos de morros, a minimização dos conflitos entre usos e atividades, o controle do tráfego e a manutenção dos valores das propriedades e do status quo. Quanto a este último objetivo, cabem algumas ponderações. Apesar de, geralmente, essa intenção não estar explícita, parece haver um consenso de que ela foi a razão inicial para a utilização do zoneamento. No início, a motivação principal para a sua adoção era a de evitar que determinados tipos de usos do solo fossem instalados em determinadas áreas da cidade. Não por acaso, esses usos eram, na maioria das vezes, aqueles relacionados às classes mais baixas (tais como vilas, cortiços, habitação popular, comércios de pequeno porte, etc.). Por conta disso, o caráter excludente do zoneamento por muitas vezes é alvo de críticas.
Contudo há de se ressalvar que a implementação de qualquer política pública, ou a falta dela, está diretamente ligada ao índice de desenvolvimento humano atingido por determinada sociedade. O desenvolvimento humano é o processo pelo qual uma sociedade melhora a vida dos seus cidadãos através de um aumento de bens com os que pode satisfazer suas necessidades básicas e complementares, e a criação de um entorno que respeite os direitos humanos de todos eles. Também é considerado como a quantidade de opções que tem um ser humano em seu próprio meio de ser ou fazer o que ele deseja ser ou fazer. Em um sentido genérico, o desenvolvimento humano é a aquisição por parte dos indivíduos, comunidades e instituições da capacidade de participar efetivamente na construção de uma sociedade próspera tanto em um sentido material como imaterial.
Assim, dentro de um viés econômico-social, não é difícil perceber que o um dos problemas ligados à falta de desenvolvimento urbano encontra-se na incapacidade dos cidadãos de compreenderem seus direitos e, especialmente, da importância de participar do processo de transformação de sua realidade e/ou do ambiente que o cerca, neste sentido torna-se de fácil compreensão que o cenário urbano conformado, reflete nada mais do que o modo operante da sociedade que o construiu. Portanto, é importante destacar que as políticas urbanas, como todas as demais, estão diretamente atreladas às demandas surgidas no seio das sociedades, ou seja, elas tornam-se diretamente dependentes da capacidade da população de elaborar suas necessidades, de maneira a fazer valer o que preconiza a Constituição Federal em seu artigo 1°, a qual define que “todo o poder emana do povo.”
LEONARDO DE SOUZA CAETANO: Arquiteto e Urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas (2004). Proprietário da Agência Preservar-te, atuando no setor de desenvolvimento de Políticas Públicas. Atua também no setor de Construção Civil com desenvolvimento de Projetos Arquitetônicos residenciais, comerciais e institucionais, Professor Universitário na Rede de Ensino Doctum desde 2015 e presidente do Instituto Revitaliza, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que desenvolve projetos sociais no Leste Mineiro desde 2011.