Ex-guardas-mirins que ingressaram entre as décadas de 80 e 90, recordam-se do ensino rigoroso que formava em cidadania e profissionalismo
CARATINGA- No passado, conhecida como “Guarda Mirim Antônio Vitorino dos Santos Júnior”, sendo este seu idealizador. A instituição teve como marco inaugural a data de 23 de novembro de 1973, com a assinatura em ata pelo Conselho Municipal de Bem Estar Social do Menor. 11 anos depois, em 28 de março de 1984, a Fundação Cidade dos Meninos (Funcime) foi iniciada por Anselmo Bonifácio, o Dr. Fabinho (ex-prefeito de Caratinga), sendo uma entidade de direito público, sem fins lucrativos, orientando crianças e adolescentes na formação do caráter e escolhas positivas e conscientes.
E foi ainda neste mesmo ano que a Funcime se mudou para a sua nova sede. Mais tarde, precisou se regularizar, numa forma de oferecer oportunidades de primeiro emprego aos jovens. As criações de programas de aperfeiçoamento profissional, em busca da inserção no mercado de trabalho, sugeriram à Funcime a regularização junto ao Ministério do Trabalho e Emprego no Programa Trabalho Aprendiz. Através do Programa de Trabalhado Aprendiz (PTA), o assistido se prepara para o mercado de trabalho. Adolescentes de 14 a 18 anos, que estejam matriculados e frequentando a escola, podem ingressar no programa e terem sua carteira profissional assinada.
E a parceria com empresas locais se mostrou fundamental para a Funcime, para aproveitamento profissional dos chamados guardas-mirins. Durante o estágio o jovem admitido segue jornada de trabalho que pode ser de 4, 6 e/ou 8 horas/dia, sem prejuízo para os estudos. Os jovens passaram a contar com salário, 13º salário e férias (proporcionais). De acordo com a dedicação do guarda-mirim, ele pode ser contratado pela empresa no final do estágio.
Este ano, a instituição comemorou 33 anos de fundação. De lá para cá, 12 presidentes passaram pela Funcime, sendo atualmente, o décimo terceiro. Noé de Souza Batista. Os tempos mudaram e a metodologia não é a mesma de quem ingressou no final da década de 80 até a década de 90. Quem fez parte das primeiras turmas, lembra-se saudosista da formação semelhante aos ensinamentos militares, priorizando hierarquia, bom comportamento e até mesmo das advertências ou “castigos”. Eles ainda ressaltam que desde os tempos de guarda mirim não ficaram desempregados e seguem se destacando mercado de trabalho.
O DIÁRIO DE CARATINGA conversou com três ex-guardas-mirins, que compartilharam suas experiências e gratidão pelos ensinamentos adquiridos. Para eles, a Guarda Mirim foi como um estágio para a vida, priorizando o caráter e o profissionalismo.
DA GUARDA MIRIM PARA PORTUGAL
Renato Carraro reside em Cascais, Portugal. O executivo da Rede Fácil Europa ingressou ainda na Guarda-Mirim, aos 12 anos, em 1985. Mas, foi mesmo na infância, seu primeiro emprego, aos 10 anos, na antiga ‘Do Lar Decorações’, “Na Praça Getúlio Vargas, tinha uma loja de decoração que era do seu Alerni e trabalhei ali de cobrador. Naquela época o pessoal vendia muito com nota promissória, então fazia cobranças”.
Já como guarda-mirim, o primeiro emprego foi no Supermercado do Irmão. “Minha mãe sempre foi cliente do Ary (Ary Soares, proprietário), antes de eu formar ele já solicitou que fosse pra lá prestar serviço pra ele. Depois para o Cloviscar, onde meu pai trabalhava e o último emprego que tive como guarda mirim foi no Banco Bradesco. A seguir, fui convidado pelo comandante Fausto para trabalhar na sede como formador de guardinha. Até sair da guarda-mirim fiquei na sede”.
Foi secretário, responsável pelas atas das reuniões dos chamados líderes e permaneceu na instituição até 1988. “Atribuo muito do caminho que percorri hoje, morando na Europa, administrador de uma multinacional brasileira aqui com muito orgulho de ser ex-guarda-mirim e ter muito disso ainda”, cita.
Ele ainda teve a oportunidade de participar de uma fase importante na história da guarda-mirim: a mudança de graduações na instituição, o que deixou o sistema ainda mais semelhante ao militar. “O pessoal da nossa turma da equipe de líderes propôs ao Fausto (Fausto da Silva), na ocasião, de mudar, porque a gente tinha três graduações naquela altura, para uma mais semelhante à da polícia militar, com cabo, sargento, tenente, capitão. Fui eleito, para equipe de líderes, que tinha secretário e vice-secretário. Gostava muito das atividades que tinha lá, treinamentos de futebol sempre participávamos, a Guarda-Mirim sempre teve time participando do campeonato infantil na época, tinha as atividades de Educação Física, os acampamentos que a gente fazia na própria sede da Funcime. A base da guarda mirim era o sistema militar, o que ajudava muito a colocar as pessoas na linha”.
Carlos ainda se lembra dos ensinamentos e de alguns colegas que fizeram parte da sua turma. “Tenho ótimas recordações da minha época de guarda-mirim, nunca escondi isso de ninguém, acho que foi uma fase muito importante para a formação do meu caráter, da pessoa que sou, muito do que aprendi naquela época trago comigo até hoje, de companheirismo, respeitar o próximo, trabalhar em equipe, isso ficou muito forte e tenho ótimas recordações da turma toda, do Marquinho, do seu Geraldo, que trabalhava na carpintaria e tive oportunidade de trabalhar com ele muito tempo aprendendo a fazer pente de madeira e cadeira. Do Ronaldo Maimone, o Rogerinho do Supermercado Soares, vários outros guardas mirins que a gente teve a honra e o prazer de trabalhar”.
DISCIPLINA E AMIZADES VERDADEIRAS
Carlos Eduardo Lima, 36 anos é proprietário da Digitec. Ele participou da Funcime nos anos de 1994 a 1998. “Meu primeiro emprego foi no Supermercado do Irmão, depois na loteria e no Credcooper”, recorda.
Ele afirma que a Funcime abriu portas para sua entrada no mercado de trabalho, além de lhe ensinar conceitos importantes para ser um profissional respeitado. “Foi importante porque me ensinou muita coisa, a cumprir ordens, horários, ser responsável. Muita coisa que aprendi lá, uso até os dias de hoje e vou continuar usando a vida inteira. Era bom, porque a gente tinha as amizades verdadeiras, o que hoje é um pouco raro, a disciplina que hoje não se aplica tanto, do uniforme alinhado, sapato engraxado e quepe bem alinhado”.
Para Carlos Eduardo, nos dias de hoje, aquela mesma metodologia encontra entraves para ser aplicada. “Não sei se devido às leis, mas hoje não é tanto assim e as pessoas acabam achando que a guarda mirim está acabando. Hoje falta um pouco dessa disciplina teoricamente militar, que colocavam as pessoas ‘na linha’, pois se deixar muito solto faz o que quer”.
‘REPRESENTA TUDO QUE CONQUISTEI’
“A guarda-mirim representa tudo que conquistei, que eu cheguei até hoje, da formação do meu caráter, dos meus princípios, além da base que trago da minha família”. As palavras são de Luiz Alberto Ferreira de Faria, 34 anos, gerente da agência Centro do Sicoob Credcooper.
Luiz Alberto ingressou na instituição em 1995, onde permaneceu até 1999. Tempo suficiente para ter a primeira assinatura de sua carteira profissional aos 16 anos. “Trabalhei como faixa azul, primeiro como assistente recruta e depois formei como guarda-mirim. Meu primeiro emprego foi como mensageiro do Asadom (Associação de Amparo aos Doentes Mentais). Depois trabalhei em dois escritórios de contabilidade e fui trabalhar na agência franqueada dos Correios”.
Ele se lembra orgulhoso daquele período, que considera ter sido mais rígido, o que exigia uma postura impecável dos chamados ‘guardinhas’. “Quando entrei acho que era muito melhor do que hoje. O jovem, se não tiver certa rigidez, cobrança, realmente fica solto. Tem muita coisa hoje no mundo para poder disfarçar, vir com uma proposta de algo em curto prazo, mas a gente sabe que depois as coisas se encaixam. Tem que haver cobrança, rigidez e lá eu aprendi com o comandante Fausto (Fausto da Silva) a ser realmente um homem mesmo. Gostar das coisas certas, cumprir horários, tudo que a gente precisa para ter uma carreira de sucesso”.
Para Luiz Alberto, o que pode parecer severo de mais hoje, principalmente com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, representava disciplina e normas às crianças e adolescentes que ingressaram naquela época. “Assim como está em provérbios: ‘Ensine o jovem no caminho que deve andar e mesmo depois de velho, ele não se desviará dele’, os castigos são uma forma lúdica de nos mostrar aquilo que se precisa enxergar. Acho que se for de uma forma respeitosa, com dignidade, ninguém vai se revoltar por isso, vai é nos ajudar. De maneira nenhuma acho que era ruim, muito pelo contrário, trago essa história para a minha vida e hoje posso falar com muito orgulho que fui guarda mirim”.
Para os meninos, o uniforme trazia mais que uma vestimenta, mas, o sentimento de cidadão, de ser alguém importante na sociedade. Ele aconselha as famílias para que encarem a Funcime como uma grande oportunidade às crianças de encontrarem o seu papel na sociedade. “Lembro com muita saudade que fui da equipe da bateria da guarda-mirim e a maior alegria que eu tinha era de vestir a minha farda, gravata, camisa manga longa. Pais, não desistam dos seus filhos. Ensinem a eles o temor de Deus, a serem pessoas boas. Qualquer que seja a profissão, se a pessoa tem princípios familiares, com certeza vai ser honrada. O caminho realmente é a palavra de Deus e as coisas que são boas na vida, são difíceis mesmo. Continuem acreditando, que seus filhos vão dar certo”.
A história da Funcime é marcada por pessoas que passaram pelo local e hoje ocupam cargos de destaque em empresas. No entanto, para Luiz Alberto esta não é a principal herança deixada pela Fundação. “Status social, condição financeira, o lugar onde a gente mora não vale nada, isso é tudo transitório. Isso a gente tem por causa da bondade de Deus, porque Deus é misericordioso e dá muito mais do que nós podemos merecer. Mas, o que importa na verdade é a formação do caráter. Quando a pessoa vem de baixo e luta muito para conquistar, não vai perder por qualquer motivo”.